(Devaneios serranos) - As luzes já não servem
As luzes já não servem…
Por entre os montes e vales, trilhos que
serpenteiam encostas, rios que lavram desfiladeiros, lugares esquecidos nas
memórias de uns e descobertos pelo espírito aventureiro de outros, facilmente
por uma dúzia de metros nos perdemos conscientes por meia-dúzia de quilómetros.
E assim, como o falcão do alto dos seus voos avista as suas presas, também aqui
do alto de tão privilegiado pouso deixo os meus olhos voarem até ali, acolá e
além perdendo-se nos detalhes da serra, reencontrando-se nas imperfeições do
horizonte. Incansavelmente palmilham cada centímetro de tão vasta paisagem como
que à procura de algo, não se sabe bem o quê, que por lá ficou em algures sem
que se saiba exatamente onde. Tamanha vastidão que tentamos embarcar num só
olhar, arrasta-nos na sua magnitude tão sufocante que nos leva após tal
contemplação a emitir um inconsolável suspiro – pelo menos em mim produz esse
efeito – reflexo da nossa impotência perante tão potente grandeza.
Todos esses contornos, como que de uma
pintura a óleo se tratasse e que leves traços se parecem tão fáceis de
replicar, deixam-se salpicar de pintas brancas, casas que interrompem a
espontaneidade da natureza, deitadas ao acaso por esses engelhados lençóis verdes,
com a mesma naturalidade dos cereais lançados à terra por uma descuidada brisa.
Concentrando-se algumas em curto espaço e outras, sem razão aparente, sem algo
que justifique tal raridade, distantes, tão isoladas que nos levam a crer só
poder ter sido um supro de vento a ditar tal sorte.
Estes respingos de alma humana que
rasgam com a virgindade da natura, atribuem-lhe uma pitada de misticismo, o
condimento secreto de um menu exótico cujo paladar procuramos alcançar sem
sucesso, e do mesmo modo levam-nos a percorrer todo o cenário saltando de lugar
em lugar como quem almeja cumprir todos os objetivos dum dado mandato, sem nunca
na verdade necessitar de o satisfazer. São rugas que afeiçoam as serranias e
aliadas à maquilhagem das giestas em flor, revelam a ternura desses rostos como
as maçãs de um qualquer antigo, queimadas pela dureza dos tempos.
Uma inviolável pauta de onde nem mestre,
nem batuta ousariam copiar tão imaculada sinfonia. Sentimo-nos enlevados,
verdadeiramente envoltos por um romance épico daquelas histórias de amores
proibidos ou diria melhor, não correspondidos.
Arrebatamentos que não se deixam levar
com a generosidade dos raios de sol deitados ao ocaso, antes nos revelam uma
nova faceta, um dom, uma aptidão que desconhecíamos num velho amigo de longa
data. Cresce assim uma chama, de um lume brando que parece não queimar mas que
aquece, aquece a alma, aperta-nos o peito, leva-nos a recordar aqueles tempos
que nunca vivemos e que convictamente acreditamos conhecer, emerge assim um crescente
ar comprimido, segundos em que nos esquecemos de respirar, momentos que
principiam um verdadeiro rascunho de nostalgia. Um estado de espírito capaz de
fazer invejar Hermes, forte quanto baste para nos elevar, fazer voar,
atravessar infinitudes e chegar tão longe quanto as estrelas que adornam a
cortina que cai de fundo escuro como breu.
Presenteia-nos assim uma metamorfose
digna da poesia de Alberto Caeiro e tão pura como a ligeireza do sono de uma
criança embalada em seu berço.
Apresenta-se-nos um verso onde os céus
rimam com os contornos da terra e nessa transmutação como que se unem, e numa
relação simbiótica se completam fundindo-se numa comunhão sem adjetivo. Onde
anteriormente reinava o detalhe, a definição, a personalidade, impera agora uma
catacrese temporal, uma sinestesia cósmica.
Luzes cintilam, num silencioso tintilar,
um frenético espetáculo que parece nunca terminar, mapeando formas e feitios
sem conteúdo aparente, sem lógica que se apresente. Interpelam-se umas às
outras, num taciturno diálogo, numa espécie de conspiração celestial onde se
adivinham perguntas e escondem-se respostas. Umas contam histórias, outras
iluminam nações, umas revelam destinos, outras alumiam caminhos. Adoramos umas
e admiramos as outras.
Somos atraídos como que por um cântico
das sereias e chamados a ir mais e mais além, tão longe onde nem as próprias
estrelas se atreveriam a chegar. Bem mais perto nos acenam as luzes em seu
copioso cenário numa árdua tarefa de plágio consentido pelo autor desconhecido.
E assim neste efeito espelhado, de luz, corpo, imaginação, ação, deparamo-nos
com um tímido e contrastante vazio, uma solidão apagada pela presença destes
brilhos refletidos. Desmultiplicam-se as funções, os destinos, as missões de
cada feixe pirilâmpico; ligam máquinas, abrem portas, confortam casas, guiam
itinerários, revelam sombras e acompanham gentes; esta última, uma arte que
rivaliza com o artesão e seu ofício cujo proveito os tempos relegam
forçadamente para o esquecimento. Acutilante destino.
Observamos tal espetáculo como se de
fogo-de-artifício ou enfeites de Natal se tratasse, crentes de que honradamente
ainda servem o seu propósito mas… já não servem!
Desligam-se máquinas, fecham-se portas,
esfriam-se casas, esquecem-se itinerários, apagam-se sombras, emigram gentes…
uma silenciosa peste negra destes tempos modernos sem cronómetro que, tal como
o gelo, mata, mata lentamente de fora para dentro, queimando os pontos mais
periféricos, mais afastados do calor humano, ataca-os deixando-os legalmente
perecer num isolamento constitucional… E como o raso soldado exacerbado por
palavras vãs se conserva em religioso sentido, no cumprimento do dever e
honrando a pátria também elas, as luzes, prosseguem impiedosamente a sua
infortunada missão. Deleitados por este retrato sem cor, somos seduzidos a
percorrer caminhos sem destino, ruas sem nome, museus da memória!
Sente-se uma taquicardia ligeira que
acompanha o lampejar das luminosidades, como que na tentativa de a um ritmo
mais acelerado apressar uma solução, uma resposta para tantas questões sem
retórica, um malfadado esforço de salvação nacional. Um autêntico remoinho que
se eleva da calmaria, instiga o caos e a fuga e no auge deste caprichoso
surgimento – repreensão divina – se desvanece incólume das suas culpas.
Emerge paulatinamente e esperançosa uma
jovial vontade de renascer, o reinventar de qualquer coisa, um deja vu, uma aurora pascal que ameaça
toda aquela tumultuosa ventura. Ergue-se um novo fulgor, a ternura do borralho
que ultima seu fôlego matutino rivalizando com o crepúsculo que rejubila prefaciando
uma orquestra de bom augúrio.
A gota de orvalho suspensa no limbo de
uma carnuda e verde folha, como o equilibrista se balança nas alturas, aguarda
o fatídico momento de uma queda desamparada, um fado inevitável que alegra a
semente que germina no solo húmido e fértil sedenta dessa essência da vida; recebem
os primeiros bons-dias em chilrearês, um desfile de aves, perfilam garbosamente
nos ramos, nas folhagens, nos varandins; as borboletas num ato fádico surgem
magicamente nascidas dos primeiros raios de sol na sua dança cambaleante;
contrasta a aparente imutabilidade dos verdes mosaicos, ultrapassados pela
frescura esmeralda da vegetação que em esforço acompanha a colina, que energicamente
se ergue até aos picos da sua força; languidamente, como lágrimas de felicidade
por tão genuíno e harmónico espetáculo, correm límpidos regatos de água
purificante; um ímpio alabastro tão leve como algodão e tão suave quanto o
linho, teima nas primeiras volúpias da aurora, em esconder religiosamente o
profundo azul do céu… E no irromper desta urdidura, como o inquietar dos
primeiros teares que laboram, ergue-se uma fervura, uma trama de vapor, de
fumos e suor, como a locomotiva que principia em partir.
A terra fumega, a nébula dissipa-se, a
fauna prepara seus salmos e a flora seus poemas, eleva-se o estrépito mundano
em rutura com a fragilidade de todo este equilíbrio que se repete mecanicamente
sem que máquina alguma, na verdade, auxilie esta perfeita equação.
Num simbiótico envolvimento, tocam-se,
amam-se, odeiam-se e continuam com casamentos e divórcios, vitórias e derrotas,
sibilantes profanações desta balança que se equilibra sem contrapeso nem
medida!
Resiste levitante e
satírico, o arco-íris, aos cinzentos respingos que procuram sobrepor-se aos
rasgos líricos desta mutação. Em sua paleta, sombreia delicadamente o pretérito
e esboça coloridamente a saudade.
by Filipe Cortesão
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