OS VENTOS DA DEMOCRACIA



OS VENTOS DA DEMOCRACIA
(um sopro pela Sociedade, pela Economia e pela Europa)


Vivemos tempos incríveis e incrivelmente únicos.
Os historiadores o dirão, possivelmente e desde a extinção dos dinossauros estamos hoje, em tempos da humanidade, perante a primeira crise verdadeiramente mundial. Muitos foram já os episódios de dificuldade para o ser humano, de diversa ordem, desde catástrofes naturais, pandemias, conflitos armados, entre outros.
A peste negra que parece alimentar-se na nossa memória intemporal, tal foi o cunho que deixou na sociedade a partir no século XIV, pode vir a ter os dias contados no protagonismo histórico que até agora granjeou. O mesmo não direi dos dois grandes conflitos armados, as duas guerras mundiais, por toda a sua destruição, brutalidade, atualidade e universalidade, todavia qualquer um destes eventos nunca tomou uma dimensão verdadeiramente planetária como a pandemia que hoje nos assombra, onde apesar do flagelo variar de intensidade nalguns países, a sua forma e o seu impacto são uniformes e globais.
Lavoisier dizia – na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma – revelando aqui todo o ciclo da natureza, o mesmo ciclo que por muito que seja ignorado se reflete na essência humana, essência essa que nada mais é do que produto da natureza. Somos deste modo levados a crer que a história é cíclica, a sociedade é cíclica, o produto da sociedade é cíclico e como tal, considerando que nada transcende a natureza podemos assumir o facto, não por ser cientificamente verdadeiro mas por ser verdadeiramente natural, de que tudo nesta existência é cíclico, permanecendo apenas incógnitas as derradeiras questões de como, quando e onde se iniciará um novo ciclo.
As ciências da mais diversa ordem, frequentemente se deparam com as consequências e iniciando um caminho inverso, descobrem as causas, não foi diferente com a atual pandemia Covid-19, surgiram os sintomas, surgiram os contágios e encetou-se a marcha em busca da origem deste vírus. Nada de relevante até aqui, isto se mantivermos este foco e fizermos vista grossa à história, lembrando Augusto Comte que alertava para a importância de observar os factos históricos e perceber qual o rumo da atualidade, parece de total importância que estamos neste preciso momento perante uma causa, a pandemia, e que daqui advirão consequências, poderão assumir várias formas, certos de que os epicentros, com as reconhecidas interdependências e sinergias, estarão em torno de fenómenos sociais, económicos e políticos.
E como os homens e mulheres são produto da natureza, e tudo o que resulta das suas atividades é seu produto facilmente adivinhamos que está na sociedade o primeiro impacto das ondas de choque da natureza.
No cenário europeu, considerando algumas efemérides já descritas, ser-nos-á de todo proibido esquecer o trilho que nos conduziu ao que somos e até onde chegámos, ou seremos assim tão poéticos ao ponto de considerar a história uma bonita rima entre versos? A peste negra trouxe consigo as revoltas camponesas em Inglaterra, a Guerra dos Cem Anos que prorrogou todo o cenário já de si catastrófico cultivando importantes, ainda que a preço elevado, mudanças na sociedade da época. O mesmo poderemos continuar a afirmar à medida que nos aproximamos do momento atual, recordando a Revolução Industrial e a Revolução Francesa fontes de ignição da era moderna, cunhando um novo rumo na sociedade com os ideais Liberté, Égalité, Fraternité, a transformação e a transição dos métodos de produção, bem como os mapas políticos que sofriam então novas pressões, a separação Igreja-Estado. Derradeiramente embatemos de frente com a Primeira e Segunda Guerra Mundial, um verdadeiro pisar do acelerador numa sociedade já de si irrequieta, dinâmica e fervorosa. Observamos assim a entrada da mulher no mercado de trabalho, o início da hegemonia dos mercados financeiros, de onde se recorda a crise de 1929, Grande Depressão, o enorme desenvolvimento tecnológico, uma nova esquadria do mapa europeu e mundial, o fim dos impérios coloniais, e também o início ou até mesmo o regresso de correntes politicas adormecidas como o socialismo, o comunismo e os nacionalismos.
Perante este último facto importa reter a nossa atenção e transportá-lo para os dias de hoje, sem alarmismos ou profecias da desgraça, é de todo relevante manter olhar atento e sensível às consequências da pandemia. O isolamento e o distanciamento social e o clima de receio, após este, terão certamente o seu impacto no dia a dia de cada um de nós, a bem dizer já o têm, e irão continuar a ter aprofundando-se esta crise numa crise económica com aquele que é o seu maior choque social, o desemprego.
Os efeitos colaterais são visíveis. Discursos como o do ministro das finanças holandês, autoritarismos como do primeiro-ministro da Hungria Viktor Orbán, ou os ideais Trumpianos e Bolsonaristas de um por todos e cada um por si revelam o que de mais profundo e íntimo se pode alimentar no medo de cada um de nós.
Sem ingenuidades devemos rapidamente admitir o problema e encetar uma política de informação, combatendo a desinformação que alimenta fantasmas, que alimenta a imaginação mais fraca e esconde a verdade.
A democracia está de novo vestida com o colete balístico.
Devemos pois neste momento pensar a democracia e a democracia é justiça, é liberdade, é igualdade e é fraternidade. Os valores morais de uma sociedade democrática vão ser colocados em causa e nesse momento deveremos estar convictos da verdade.
A justiça deve ser cega e surda, uma cegueira escura e surdez blindada, contrariamente aquela que ainda é capaz de se guiar pela dança das sombras ou escutar profanos sussurros. Porque não repensar o sistema prisional e a sua intemporalidade pré-histórica, redesenhando o exercício do adestramento do cidadão prevaricador, conduzindo-o para o regresso à sociedade, ao invés de um caminho negativo, de perjúrio, chicoteando-o, calcando cada vez mais o fundo do poço?! Porque não libertar-se das amarras da corrupção e usar essas mesmas amarras para travá-la e amarrá-la? Porque não aproximar a justiça dos mais injustiçados?
Falar em liberdade provoca hoje risos no comum do cidadão, é uma liberdade refém de alguns, meramente simbólica, uma liberdade que se esvai na ausência de tempo para a família, no condicionalismo educacional e na pressão pela ineficiência do mercado de trabalho.
Como pode o cidadão falar em igualdade? Da igualdade da justiça?! Da igualdade nas condições de acesso ao mercado de trabalho?! Da igualdade entre homens e mulheres?! Ou da igualdade económica?!
E todo este mar de dúvidas faria algum sentido se não vivêssemos em democracia? Perentoriamente, não!

Vivemos uma exacerbada conquista material, agudizando o fosso entre os sequestradores da riqueza e os reféns da pobreza.
O impacto económico desta pandemia deve ser entendido no seu todo, na possibilidade e na impossibilidade, ou não acreditando eu em impossíveis, na verdade e na inverdade. Todas as ciências buscam o caminho da verdade, o facto dos factos, a economia não foge à regra mas o crédito veio criar uma inverdade, a possibilidade de viver fora da verdade com algo fictício que alimenta a nossa ficção!
Alimentamos a possibilidade na impossibilidade, a possibilidade de ter aquilo que é impossível de nos pertencer porque na verdade nada nos pertence eternamente.
O planeta terra é finito, a população mundial em cada momento é finita, bem como os recursos e os meios. Interessante seria se nos relacionássemos com outra vida planetária, exponenciando a multiplicidade de todos estes fatores, porque aí sim entramos no prisma universal e esse é infinito.
Conscientes desta e da nossa finitude, cumpre-nos reconhecer que entramos forçadamente no jogo do bicho, ou jogo da pirâmide mundial, o mesmo que é proibido em boa parte dos países, o mesmo por que ficou conhecido Bernard Madoff, o mesmo que é abstratamente aceite.
Na base deste jogo estamos todos nós, desde Warren Buffett, Bill Gates, Donald Trump, mas também a senhora Koa produtora doméstica de galinhas nos Camarões, ou o menino Zanga de 15 anos que trabalha ilegalmente a apanhar cacau numa exploração na Costa do Marfim, e também qualquer um de nós. Acontece neste jogo que os sequestradores de riqueza inundam os vários patamares da pirâmide, fazendo com que alguns de nós permaneçam sempre na base e outros suspensos a meio da subida, isto até ao momento em que perde a dinâmica, ou a base fica entupida de senhoras Koa, meninos Zanga sem espaço para os lobos do capital entrarem, perdendo a pirâmide a sua fonte de alimentação, representando grandes perdas para os que ocupam os lugares cimeiros, desmoronando-se o esquema, momento esse em que surgem fundos internacionais, bancos centrais e outras entidades com créditos e emissão de moeda, reintroduzindo novamente a capacidade de alimentar a possibilidade da impossibilidade. E adivinhe-se quem está na linha da frente.
A pandemia Covid-19 vem sem dúvida trazer um longo caminho de pedras, de muitas pedras, e bem afiadas. Seria enganador dizer que não, seria uma irresponsabilidade tanto pelo conhecimento, como pelo dever ético e moral. Muitas têm sido as comparações coma crise financeira de 2008, graficamente poderão até haver decalques mas na economia real será muito mais do que isso. O distanciamento social, parece algo pequeno e redutor para o impacto que representa, com efeito a paragem completa de muitas unidades empresariais, unidades de produção, a perda nominal e real de salários, e o encerramento de atividades produtivas e postos de trabalho, acompanhados de um maior endividamento público e privado são presságio de efeitos nefastos e duros.
Na crise anterior verificou-se desemprego, insolvência de empresas, perda de relações comerciais, todavia a economia nos seus mais diversos vetores apenas abrandou, houve reajustes de capital e capital humano, reestruturação de negócios e relações comerciais, no entanto a caminhada manteve-se. Assistimos a uma crise da possibilidade do impossível, uma crise financeira.
A atual crise, pois já nos rodeia ainda que de difícil caracterização no momento, é uma crise da possibilidade do possível, uma crise humana. Estamos a observar e vamos continuar a verificar uma destruição da base económica, remontado aos pergaminhos da economia, a economia da troca, onde se representa a mais básica relação de oferta e procura, o encontro de dois indivíduos com necessidades complementares. Enquanto que anteriormente se verificou um reajuste, e que também aqui se irá verificar, foi um reajuste na passada sem interromper a corrida, ao invés vamos observar um reajuste na corrida interrompendo a passada.
Vejamos que várias atividades económicas estão a perder por inteiro a sua dinâmica económica, tanto o relacionamento a montante como a jusante, com fornecedores e clientes, quebrando-se assim elos e incapacitando-se qualquer reajuste. Consequentemente encontramos a mesma dificuldade ao nível do emprego, onde vários trabalhadores instruídos num ofício, percursores de um determinado know-how vêem-se agora com um conjunto de manuais sem edição. O desemprego estrutural e também o desemprego friccional ganham um relevo particular pois aquilo que noutra situação seria fruto dos tempos, um dismatch entre a procura e oferta de trabalho que surge naturalmente, neste cenário ele emerge força e prematuramente.
Todas as crises são oportunidades, sendo todos nós, uns mais que outros é certo e merecedores de todo o respeito, forçados a encarar a crise, também os decisores políticos devem encará-la como uma oportunidade de encabeçar mudanças estruturais. Vejamos a Grécia que desde a crise de 2008 continua em declínio, observando uma curva de crescimento em “L” contrariamente, por exemplo ao Canadá que contava com uma retoma em “V”, permite deduzir a carência de reformas estruturais da mais diversa ordem que nunca ocorreram no caso grego, contribuindo para refazer ou iniciar um equilíbrio entre os principais fatores sinérgicos e dinamizadores da economia e da sociedade. Este é o momento, foi a natureza que o ditou, devemos aproveitá-lo, antecipando o sofrimento e rejeitando qualquer conto de fadas ou promessas proféticas.
Retoma-se a discussão do estado social, o Estado fica novamente gordo e pesado, há que transformar muita dessa gordura em massa muscular redirecionando os seus esforços para uma redistribuição mais justa, mais igual.
Viveremos a dicotomia entre socialismo e capitalismo, essa relação de amor-ódio necessária à existência de ambos, uma utopia que alimenta a nossa existência que trava a ditadura do capital e afasta a anarquia social, um equilíbrio apenas possível no pêndulo da democracia.
O caminho vai refazer-se, pois nada se perde tudo se transforma, importa que essa transformação seja profunda e transversal a cada um, e a todos nós.

Se os há que defendem um por todos e cada um por si, pelos sopros da Europa devemos em uníssono envergar o lema mosqueteiro e anunciar o um por todos e todos por um.
Nesta maratona sem fim a Europa continua a ser dos últimos a largar a partida mas sempre ou muitas das vezes a primeira a chegar. Sem exceção patinou no arranque.
Herdeira dos mais prodigiosos contributos intelectuais e científicos para a humanidade, exige-se de si própria uma nova era iluminista que lhe permita distanciar-se da linha de partida e assumir uma vez mais a liderança da corrida.
Um primeiro passo para o homem, um grande passo para a Europa, foi dado por Mario Draghi, à frente do BCE, assumindo como europeu um problema até então transversal a todos os Estados-membros, isto é unidos na saúde e na doença como manda a lei do fiel matrimónio. Desfez o tabu de uma política monetária comum, expandido os valores democráticos fundadores da União Europeia em toda a sua dimensão. As políticas consideradas reforçaram a União num momento em que a polarização ameaçava e a tendência de declínio parecia não ter fim. Todavia, imediatamente antes desta crise pandémica, a Europa encontrava-se novamente a iniciar corrida numa passadeira rolante, correndo nos limiares da dita armadilha de liquidez, isto é querendo correr mas com receio de sair do mesmo sítio, uma vez mais levando a crer que problemas estruturais são mais que uma mera pedra na engrenagem.
Como que uma segunda oportunidade, aquela que já não esperávamos ter, surge nova crise, uma espécie de mão invisível, não a de Adam Smith mas aquela que bofeteia em sinal de um urgente despertar para uma mudança de paradigma.
A Europa, humana, a mesma do Iluminismo, da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a mesma da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, definiu como metas sociais nada menos que valores numéricos, abstratos, desprovidos de qualquer motivação moral e social. Refiro-me claro está a esse telhado de vidro que são os 3% de défice e 60% de dívida pública, os mesmos que atrasaram a recuperação económica dos países economicamente mais débeis, nalguns casos afundando ainda mais as perspetivas de crescimento, violando aqueles princípios fundadores ao vender a liberdade à escravatura do capital, a igualdade à assimetria económica e a fraternidade a um caminho de solidão e austeridade.
Importa pois refletir sobre esta Europa, a mesma que é composta por cada um de nós e por todos nós, aquela da qual beneficiamos mas abdicamos de beneficiar. Estamos perante o paradigma e a sua possibilidade de mudança e mudar é humanizar a Europa, mudar é transformar os 3% de défice e 60 % de dívida pública em metas sociais e políticas, um desafio norteado para o desenvolvimento humano que permita esquecer a arrogância europeia servindo e inspirando nações onde alguns do direitos por nós adquiridos e quotidianamente espezinhados pelo esquecimento ainda são utopia. Chegou o momento de redefinir as metas e traçar objetivos que passem pela possibilidade do possível que abarquem a universalidade do acesso à saúde e à educação, a igualdade de género, o desenvolvimento de políticas ambientais e socioeconómicas sustentáveis, a redistribuição fiscal bem como a defesa dos direitos laborais.
Os europeus querem fazer parte do projeto europeu, querem participar na construção de metas e objetivos tangíveis que permitam assegurar que as gerações vindouras, os seus filhos, netos, descendentes, encontram um mundo cada vez melhor.
Tal como o filho pródigo que sempre regressa a casa, a União Europeia terá de regressar às suas origens democráticas, aos seus princípios fundadores recordando constantemente de que ela existe de e para os europeus.

A democracia nunca foi perfeita, nem nunca o será. Perfeitos são os deuses, perfeitos são os reis, perfeitos são os ditadores. Dizia Churchill – a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras – encaixando perfeitamente na realidade que hoje atravessamos. Todas as outras formas de governo vivem na perfeição, ignorando os fracos, ignorando as dificuldades, ignorando as imperfeições como forma de legitimar um falso brio dourado do que aparenta mas não é, uma espécie de veste de Luís XVI. São distantes da realidade, são distantes da sua génese, são distantes do povo.
A democracia, essa habita entre nós, no seio do povo, nas imperfeições de cada um de nós e enquanto um todo social, pois tal como defendia Espinosa – na democracia, a própria constituição (o Estado) não aparece senão como uma determinação, a saber, autodeterminação do povo – e é deste modo por ela e através dela que encontramos lugar para as nossas imperfeições e tolerância para as aperfeiçoarmos.
Os ventos da democracia devem novamente soprar e soprar fortemente, trazer bonança às velas desta caravela, obrigando a uma reflexão profunda sobre o papel do Estado e da sociedade. O povo são as instituições e as instituições são o povo, ou pelo menos assim deveria ser, é esse o motivo que deve obrigar a uma introspeção e reencontro com o eu social, o eu democrático percebendo até onde a vontade do povo se reflete nas instituições. São elas um reflexo do Estado, ou um reflexo do povo? É o Estado um reflexo do povo, ou é o povo um reflexo do Estado?
Os ventos nunca estarão em causa pois esses bebem da força da natureza, já o sopro poderá perder intensidade, enfrentamos deste modo o dever e a responsabilidade de nos sabermos revezar na hora do sopro pois com ele os ventos serão mais fortes!

por Filipe Cortesão

Comentários

  1. Brilhante reflexão, cabal e preponderante para o que queremos caminhar..
    Parabéns!

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