HÁ NÓDOAS E NÓDOAS
Fim do dia. Já
escurecia, um fim de dia que não podia ficar por ali. Havia uma qualquer
inquietude naquele sentimento de vazio, faltava uma cartada que o tornasse
pleno, o deixasse preenchido. Ir para casa estava fora de questão, seria um
capítulo por terminar e uma injustificável insatisfação por tão abrupto
término. Decidi jantar por fora, deslocar-me a um restaurante, um que fosse
singelo, não queria exacerbar aquele momento culpando assim o estado anímico daquele
dia, nem diminuí-lo à apatia que o dominara.
Numa pequena
travessa de uma rua esquecida no tempo, assemelhando-se mais a um beco sem
saída, guardava em si um escape tão esperançoso como uma luz ao fundo do túnel
e aí entrei, atrás dum nostálgico aroma, na casa de pasto Palus Mandatum.
No interior dominava o crepúsculo, um silêncio comprometedor, arrebatado talvez
pela viagem olfativa. As cores pastéis e o lusco-fusco pincelados, escondiam
naquele vislumbre pitoresco alguns rostos e silhuetas que também ali se
encontravam.
Em busca desse
epicurista intervalo sentei-me, antes do derradeiro desfecho, como
habitualmente, numa daquelas cadeiras da cozinha velha da avó, numa mesa
quadrada com toalha azul desmaiado, junto da janela, onde podia evaporar o
olhar, rua fora, sem que conscientemente me ausentasse daquele estado
intemporal, imutável. Um candeeiro público iluminava-me num feixe divino,
destacando palidamente o meu rosto naquela misantropia pouco alentada por umas
tacanhas arandelas.
Nesse preciso
momento, como que antecipando uma rutura à taciturna placidez incrustada naquele
quadro de honra, de sapato baço abundante em graxa por polir, calça justa, de
camisa branco imaculado com um pano serviçal no braço esquerdo, o direito imóvel
e paralelo ao corpo, sou indagado pelo bigode sidonista do Sr. Guerra. Era o dono
mas também servia! Brindava-me então com uma ordem gastronómica manufaturada,
sugerindo com total indiferença, numa letra propositadamente impercetível, os
pratos do dia, diria antes da noite, ou de todos os dias. Todos me inspiravam um
confortante acompanhamento oleoso, o que pelo avançar da hora me poderia causar
alguma indisposição. Gentilmente fiz o meu pedido, recebendo um franzido
semblante do Sr. Guerra que num murmúrio impercetível, voltou costas e
afastou-se.
O silêncio
timidamente interrompido regressa e como um íman atrai a minha razão do
horizonte exterior para os figurantes que compunham a cena teatral, naquela
sala de testemunho feudal, ocupando as suas poltronas.
Ao olhar mais
atento, apercebi-me que aqueles discretos encarregados, de farta obra, se
empreendiam nos mais tradicionais pratos desde uns nabos salteados com enguias
fritas, ao suculento arroz de lampreia onde o sangue e suor, duma maratona humanista,
se substituem às douradas águas do rio, bem precedidas duma reconfortante sopa
de lérias.
Os talheres,
observavam na sua imóvel obediência, aquelas almas, reféns da gula, sugarem sem
aduana o caldinho preparado, ou a sujarem as próprias mãos subalternas ao seu
apetite, alambazando-se num orgulho mais forte que a vergonha como pegavam a
comida e dela se enodoavam invictamente. E alguns, os mais vorazes, tentando
vencer as leis do tempo, com aquelas mesmas mãos, e já sem mãos a medir, lá
pegavam desesperadamente num ou noutro talher granjeando num fiel monismo mais
algumas nódoas.
Chega o Sr.
Guerra com os bifes de frango grelhados e uma salada sem tempero, conforme
pedi, e num movimento austero acrescentava na mesa uma garrafa de água, sem
rótulo, que lhe solicitara para acompanhar a refeição. E antes mesmo que
pudesse agradecer, volveu, preenchendo de sobranceira autoridade o lugar atrás
do balcão deixando à sua passagem, na vanguarda das mesas que por ali havia, perfilada,
a opulenta clientela que de modo sobejamente deselegante corrompiam as suas
roupas, comprometendo-as de impecáveis nódoas, enquanto nelas esfregavam meritoriamente
as mãos gordurosas, deitavam sobre mim um ameaçado olhar.
Estiquei o
guardanapo de pano, na sua inocente brancura, e coloquei-o ao pescoço entalado
na gola da camisa. De repente sinto efervescer uma estranha ansiedade na
metafísica daquele despótico cerimonial.
Bem, iniciei a
refeição socorrendo-me da faca e do garfo e qual às de trunfos, numa última jogada,
para lançar o pânico na mesa do vício, provoca-se um súbito alvoroço nos
verdugos de faminta saciedade levantando-se numa sorrateira prontidão e encaminhando-se
num passo ordinário para a saída. Tentam esconder timidamente as chagas de tão
ávido repasto exibindo apenas as indisfarçáveis distinções remanescentes nos
fartos bojos de ego. Numa desconfessada oportunidade o candelabro de rua, num
denunciante foco, ilumina oportunamente as nódoas mais bem conseguidas
precipitando um aparatoso congestionamento no êxodo. O Sr. Guerra, sem revelar
qualquer surpresa, deixa escapar por entre o seu absoluto bigode um ligeiro
contentamento, exigindo alguma cortesia aos que num olhar curvo prometem, por
cima do ombro, o leal regresso.
O frango
arrefecia, a boca secava de espanto, a lagartixa na verde alface avançava ao
tic-tac do relógio e qual não foi o pasmo, perante aquela bicha em hora de
ponta, angelicamente se erguia por cima do batente da ora portagem, num
envernizado de pó e letras esquecidas, um pressagioso penhor à mais incauta
clientela daquela falperra, Apreciamos Muitas Nódoas.
Saíram sem
soldo nem gorjeta. Guiava assim a primeira garfada pelas coordenadas da boa
esperança, enquanto aritmeticamente ponderava pagar em dinheiro ou cartão! O
Sr. Guerra tinha-se ausentado, não se adivinhava máquina registadora ou
pagamento multibanco, talvez tivesse ido procurar o livro de cobranças.
Reinava a
serenidade, erguia-se levemente um ténue cheiro a óleo frito quase
impercetível, talvez entranhado na essência daquele espaço, a luz pública de
brio vitorioso que penetrava pela janela e iluminava as minhas feições, ocupava
agora os espaços deixados vazios pelos distintos paroquianos. Por entre o
silêncio conspirador pautava uma respiração, profunda e pausada, anteriormente
camuflada no ruído. Percorri com o olhar o espaço, curioso com aquele detalhe,
até que lá num canto, onde a luz já escassamente chegava numa espécie de duelo
com tão fardado negrume, adivinhei uma forma pouco mais robusta que as
anteriores num recosto de almoxarife. Continuei a tentar vislumbrar, lentamente
se descobrindo, como num teatro de marionetes, a figura que ali se plantara.
A salada
parecia fresca, apesar da combinação de verduras, um improviso pouco habitual,
talvez, era uma verdadeira salada, e tomava agora um gole de água, límpida,
translúcida, homogénea, saciando igualmente a minha sede. Permanecia ausente o
Sr. Guerra e o seu bigode.
Projeta-se uma
voz convictamente monocórdica, lá daquele principado, perguntando se me
agradava a refeição, ao que respondi afirmativamente enquanto lentamente se
esvanecia o véu e se desenhava uma personagem secundária, em quase tudo
semelhante aos figurinos anteriores mas com ligeira maior proporção. A minha
atenção prende-se então num acessório, raro por aquelas bandas, envergava
garbosamente igual guardanapo de pano, um estandarte, não na gola da camisa,
como o meu, mas atado ao pescoço e de maior dimensão.
Aspirava os
gordurentos dedos, como num sinal de satisfatório término do seu banquete, sem
que atempadamente me fosse possível perceber que especialidade refastelara tal
alarvidade. Nesse mesmo instante, numa esperada surpresa, percebo que o
enodoado guardanapo cobre um sem número de antigas nódoas numa camisa, já gasta,
reformada de tempos imaculados. Basculhava o bolso à procura de algo enquanto
me indagava, numa entoação repentina, se eu percebia a importância daquelas
nódoas, interrompendo abruptamente a interrogação. O Sr. Guerra transitara inesperadamente
num corredor, atrás do balcão, sem manifestar qualquer interesse pela conversa
que ali se fazia.
A luz parecia
mais intensa e revelava, a pouco e pouco, uma emblemática composição da máquina
do tempo. Retorqui, questionando porque motivo usava um guardanapo se a camisa
era em si uma bela coleção de nódoas, mostrando perceber o bizarro louvor que
ali havia tido lugar. Responde-me, colocando o dinheiro em cima da mesa, o
longo cadastro de refeições que ali tomara fizeram-no entender que apesar da
oferta, política da casa, algumas nódoas, pela sua dimensão, deixavam de
compensar o tempo e lavagens que exigiam até se tornarem despercebidas. Sem que
tomasse fôlego, disparei de imediato que teria sido o motivo para usar
guardanapo de pano, ao que me devolve afirmando «sabes… há nódoas e nódoas».
Detrás do
balcão, secamente, num tom ainda desconhecido, mais favorecido que favorecedor,
faz-se ecoar com amarga rispidez a voz do Sr. Guerra, questionando se os trocos
estavam certos e deitando um olhar descrente voltou a sumir-se.
O que restava
do frango estava já frio, na verdade era um pouco ensosso, e o remanescente da
salada, continuava a ser uma salada.
Abeirando-se
de mim tamanha opulência, enquanto o seu destino era a saída, apontou-me o
primeiro sucesso, ao que subitamente, vergando a vista, vejo uma mancha no
guardanapo de pano que eu usava trilhado na camisa. Apressei-me a tentar disfarçá-la,
em esforço vão, procurando o feixe de luz que anteriormente me iluminava e ali
estava, num lampejo, tratava-se apenas dum gotejo de água, passageiro, sem
comprometer a brancura inicial. O Sr. Guerra, já regressado, perdera o rasgo de
confiança que fugazmente lhe animara o bigode sidonista defronte tal
constatação, iniciando nervosamente uma vingada contabilidade num guardanapo de
papel, amarelado pelos tempos que ali ficaram. E ante a ansiedade espremida da
ilusão vencida que ali brotou, já à porta, aposentando-se daquele lugar, o
conformado acontioso, revogado do guardanapo que envergara, resignado à
inseparável camisa, amansa a fervente inquietude exclamando oprimidamente «não
são as nódoas que dignificam o homem, é o homem que dignifica as nódoas».
Perplexo,
encarnado numa presente ausência, fitando indecisamente o guardanapo de pano
que eu ainda envergava, não no pescoço mas preso na gola da camisa, comprimia
cerradamente na sua mão direita o guardanapo de papel onde assentara a conta.
Colocando no balcão, o guardanapo de pano ainda espelhando a inocente brancura,
pousei igualmente à sua direita a quantia mais que suficiente para saldar, mais
a expectativa frustrada, do que a refeição cozinhada, e num despedido olhar
divergente, saí tranquilamente.
O candeeiro no passeio tremeluzia agora, a minha camisa cintilava de limpidez, a noite preenchida e o dia concluído, deixavam para trás uma porta fechada que apenas abria para dentro invocando, por entre o vidro pérfido e fosco, um «volte sempre».
por Filipe Cortesão
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