A ENXADA VELHA
No lugar onde vivo, terra de gentes do campo, dois homens, de imortal saúde, dedicam-se à arte agrícola. Desde os seus 10, 11 anos, talvez, idade que os calos e as rugas já deixaram de precisar, cada um em sua bicicleta, emprestadas por seus pais, senhores da pastorícia e da lavoura, como dois irmãos, pedalavam de aldeia em aldeia.
Pouco mais ofereciam
que a moldura de um corpo pronto a ser talhado, na dureza dos tempos, e as mãos
tenras que se esculpiam nos caprichos da natureza. Prometiam outros feitos mas
prometidos aos afetos, da experiência, confiou-se-lhes fiel amiga, a enxada, a
que juraram eterna obediência. Apenas ela os separava, e apenas ela os unia, à
mãe das mães, à filha de uma vida.
Nasceram premeditados
e de contrato com o destino já assinado, restava-lhes cumprir, religiosamente,
cláusula única, igual à de tanta outra gente. Deitados à mesma sorte, sem nunca
o prejuízo contar, de olhar benjamim, o mesmo que conservam, além dos anos,
revela o tímido sorriso que guardam, como memória, de um saber plantado.
A palavra das gentes
recorda, ao coro da homenagem, os anos de serviço cumpridos na arte pura de
saber cuidar, o que a pura mãe soube gerar. Empenhados até ao fim, um fim que
se esconde por detrás do dizer, tarda em se mostrar, e teme por só agora chegar
ao princípio do fazer.
Bons amigos, sempre
juntos, toda a vida cavaram, cavaram sempre do mesmo jeito, as bodas foram
abençoadas, e desses casamentos, dois diamantes brotaram, e agora, também eles
se preparam. Prontos para as arestas limarem, recebem de seus pais as sábias
amadas, enxadas que foram, enxadas que são.
Lado a lado se
bateram, lado a lado aprenderam, lado a lado irão ensinar, uma a mesma enxada,
o mesmo cabo, a outra a mesma enxada mas já sem cabo. Os cabos lá estão, como
troféus, livros na prateleira, rostos do mundo, de um mundo, seu filho terá
agora que escolher o seu cabo e encavar, a velha enxada, do modo que lhe valha.
Já o outro, contente, admira a enxada velha, e o cabo velho, nunca desencavado,
moldado pelas mãos da experiência feita, a mesma em que pegará e, por outra
vida a cavar, continuará.
Ó homem que vives da terra,
E pela terra existes,
Valha-te o sangue na guelra,
Mártir que nunca desistes;
Tu que és criador
Que nunca deixas de cavar,
Serias tu o Senhor
Se aprendesses a gerar;
Pelo amor
à primeira vista,
A vida te
foi empenhada,
Não há
livro que resista
À escola
da enxada;
Cedo, tu
a encavaste,
O teu defeito
ficou,
Tarde, tu
a largaste
O teu feitio
passou;
Ó enxada
que fizeste,
A
experiência sabida,
Ao homem
roubaste
O saber
de uma vida;
por
Filipe Cortesão
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