A ORGÂNICA DA MOBILIDADE

         Relatava Eça de Queirós, em Coimbra de Antero, o entusiamo e novidade que a evolução na mobilidade representava à época, «pelos caminhos de ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha, torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários… Cada manhã trazia a sua revelação, como um Sol que fosse novo». Foi uma revolução para a sociedade da época, o caminho de ferro era o expoente da mobilidade, e não só, ia mais além do transporte de meros corpos, transportava tendências, transportava cultura, transportava mundividência, transportava a (re)evolução. A ferrovia transformou-se num fluxo orgânico de um organismo maior, superior, a organização social e a sua natural interdependência. Compreendemos o retrocesso que nos foi possível alcançar até aos dias de hoje, em que a descrição apresentada por Eça, não passa agora de um retrato a preto e branco de uma imagem distante.

Se concebermos a sociedade e suas relações, designadamente as suas dinâmicas, de um ponto de vista orgânico (nada de novo até aqui) e percebermos a mobilidade como um órgão que necessita e é necessário a um organismo maior, rapidamente concluiremos pela importância deste fator no desenvolvimento civilizacional.

Releva então olharmos à nossa volta, ou até mesmo para nós para compreendermos este fenómeno na perspetiva aqui oferecida. A densidade óssea determina a solidez e resistência do esqueleto, uma maior densidade traduz-se numa maior compartimentação que por sua vez se faz refletir numa estrutura óssea mais robusta na sua função de suporte. Por outro lado, as sinapses que representam (grosso modo) as junções entre a terminação de um neurónio e a membrana de outro contribuem para a continuidade de um determinado impulso nervoso, permitindo uma resposta mais rápida e mais eficiente por parte do organismo estimulado. Encontramos aqui dois fatores essenciais para a mobilidade, a densidade da sua rede e a velocidade de circulação, elementos estes que são a chave de um universo paralelo que tão bem conhecemos, também com sua própria orgânica, precisamente a Internet. Reunidos estes elementos, estamos em condições de olhar para a rede e transporte ferroviário, enquanto transporte público que abrange (insuficientemente) todo o território nacional, e perceber como responde aos estímulos sociais através destas premissas orgânicas. A mobilidade que trouxe a inovação e o futuro, aproximou lugares distantes e uniu a família humana, é hoje, em Portugal, fator de fortes assimetrias entre o interior e o litoral do país, entre os centros metropolitanos e as cidades de menor dimensão, considerando ainda o caráter de bem público (não excludente e não rival), designadamente do comboio, em boa verdade, onde este acaba por ser excludente de algumas condições sociais mais desfavorecidas, nomeadamente estudantes, desempregados e pessoas com deficiência (não só), e rival quando deixa de dar resposta, ou o faz de forma pouco condigna, a aumentos da procura. Elenca-se assim que os benefícios proporcionados nos grandes centros metropolitanos (Lisboa e Porto), com passes de valor mais acessível, maior combinação de transportes e transbordos, distanciam-se substancialmente da solução para idênticas circunstâncias espaciotemporais (Coimbra – Aveiro; Coimbra – Pombal; Faro – Portimão; Covilhã – Guarda, a título de exemplo), acrescendo em alguns outros casos as precárias ligações aos centros urbanos. Um caso divertido da miopia da acessibilidade do serviço, é Vila Nova de Gaia, estação de Gaia, pouco movimentada e sem respostas adequadas de transbordo, onde fazem paragem todo o tipo de comboio, e Devesas, com metro e autocarro a 100 metros, onde apenas param urbanos e regionais, pois bem e que dizer de Coimbra B e Coimbra, ou do Metro Mondego, seria suspeito. Outros casos há.

A mobilidade relaciona diretamente as pessoas com o espaço público, com a cidade e como tal com a cidadania. A rede ferroviária é um ativo caro, dispendioso, sim é, se a solução não passa por aumentar a densidade óssea deste ativo, então é necessário dividi-la em frações mais pequenas que deem lugar a mais sinapses através de um encurtamento de distâncias provocando uma maior intensidade de transportes, soluções entre cidades vizinhas (curta-distância), entre regiões (média-distância) e entre principais áreas metropolitanas (longa-distância e alta velocidade). Reserva-se ainda às Comunidades Intermunicipais o trabalho em torno de respostas conjuntas e integradas de sistemas de transporte público devidamente adequado às especificidades das rotinas sociais locais e coadunado com outras formas de mobilidade. O futuro da mobilidade passa pela capacidade de aproximar espaços, lugares e pessoas, arte, música e ideias. A sociedade de hoje é o futuro da mobilidade.

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